segunda-feira, 5 de abril de 2010

Centro Histórico de Leiria



- Necessidade do Centro Histórico de Leiria

A necessidade de preservação do Centro Histórico de Leiria não se prende apenas com o respectivo valor de memória e recordação. Nem apenas com o respectivo sistema urbano (tardo-medieval), cuja matriz é análoga a muitas outras cidades de fundação portuguesa: articulada topograficamente e dividida entre uma alta e uma baixa. Nem, ainda, com o valor excepcional dos seus dois monumentos mais relevantes: o conjunto invulgar do Castelo Medieval, iniciado no século XII, e o importante edifício da Sé, projecto maneirista do século XVI, da autoria do Arqº Afonso Álvares.

Decorre, também, de três outros valores fundamentais:

a) A matriz renascentista da baixa, do século XV, invulgar em Portugal, com a espinha dorsal da rua direita, ligando dois terreiros (largo do terreiro e largo da sé), articulada em tabuleiro geometrizado com a praça rodrigues lobo e com a topologia da encosta;

b) A permanência desta forma urbana durante 5 séculos como "a cidade", apenas claramente ultrapassada após os anos 60 deste século.

c) A qualidade única do seu ambiente construído e dos seus espaços públicos, apesar da degradação e da desertificação. Nenhuma outra parte da cidade tem idêntica qualidade e, neste sentido, nenhuma outra tem o respectivo potencial de qualidade de vida;

d) A quantidade e concentração de edifícios cívicos, equipamentos e serviços públicos, e monumentos. Nenhuma outra parte da cidade tem idêntica quantidade e concentração (também significa qualidade de vida potencial).



Centro Histórico e Cidade

A noção de Centro Histórico é, apesar de legítima, artificiosa, dado que "toda a cidade é histórica". As cidades são sistemas urbanos, com estruturas de vasos comunicantes: o que se pensa, projecta e constrói para uma parte da cidade tem sempre influência nas outras partes, como uma mecânica de fluidos.

Por isso, diga-se em boa verdade, a actual desertificação e degradação do centro histórico decorre directamente das opções políticas e técnicas para a cidade após 1965, com especial incidência após os anos 80: em 1960, a cidade tinha 7500 habitantes, com cerca de 5000 no centro histórico; actualmente, a cidade tem 43 000 habitantes com menos de 800 no centro histórico. Ou seja, só é possível equacionar o Centro Histórico no contexto geral da cidade de Leiria e do seu território.


Neste quadro, comum a muitas outras cidades portuguesas, importa considerar como principais desafios gerais:


a) A ligação entre o centro e as periferias, num quadro de reconstrução da paisagem urbana;

b) O combate à crescente dispersão da cidade, muito desarticulada e fragmentada (densidade 1085 hab/km2; média nacional das cidades portuguesas 2 230 hab/km2), entregando maior rigidez do perímetro urbano;

c) A importância relativa das infra-estruturas, dos vazios urbanos, dos equipamentos e dos "edifícios de carga" como elementos estruturadores dessa ligação e rearticulação;

d) A gestão do parque habitacional (21 500 alojamentos para 15 821 famílias) e a difícil regulação da mobilidade dos habitantes (como trazer habitantes para o centro histórico?);

e) A constatação de que a maioria dos habitantes da cidade é migrante de 1ª ou 2ª geração, ou seja, não está enraizada na história e memória colectivas da cidade, o que implica equacionar uma política firme de proximidade dos cidadãos:



1981 - 11 500 habitantes
1991 - 27 500 habitantes
2001 - 43 000 habitantes
Taxa de crescimento - 1991/2001: 33,2% (média nacional das cidades 3,9%)
Taxa de crescimento - 1981/2001: 270%



- Centro Histórico e Cidade no contexto nacional
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A situação de Leiria está longe de ser única, e importa compreender minimamente a sua inserção no contexto nacional.

Grande parte (cerca de 25%) do território cultural português - artificial, com 2000 anos de história - foi desfigurado no espaço de 50 anos, com particular incidência a partir dos anos 80/90, pela urbanização dispersa e pelo abandono rural, provocadas, em grande parte por:

a) Desenvolvimento socioeconómico e industrial tardio (a partir dos anos 60), por comparação com o centro da Europa (Portugal não teve revolução industrial no século XIX);

b) Legítimas expectativas de uma vida melhor, com forte migração para o estrangeiro e para as cidades (mais e melhores empregos); com 800 000 pessoas que vêm de África após 1974; e com migração dos centros históricos para as periferias;

c) Introdução e crescente democratização do automóvel, num novo quadro de acessibilidade;

d) Velocidade extraordinária da mudança (30/50 anos: 1973 com 30% de população agrícola, 9% em 2001, 5% em 2009), só comparável a países da América Latina, com falta de resistência do cadastro e ausência de instrumentos eficazes de gestão territorial ;

e) Neste quadro, legislação anacrónica: Lei dos Loteamentos de 1965 e Decreto 73/73 de 1973.



Os efeitos estão à vista. Permitam-me enunciar alguns indicadores:



a) Em 1980, Lisboa tinha 1 000 000 de habitantes e, em 2005, cerca de 520 000.

b) Pelo contrário, em 1991, Sintra tinha 260 000 habitantes (220 000 em 1980), em 2001 cerca de 360 000 (+27%, e terá hoje, pelo menos, mais 100 000).

c) Em 1961, o centro histórico de Évora tinha 16000 habitantes, hoje tem menos de 5000.

d) E, sobretudo, 80% da população portuguesa vive hoje numa estreita faixa junto ao oceano entre Setúbal e Viana do Castelo (85% com a faixa algarvia), ou seja, 8 milhões de pessoas em cerca de 15 000 km2 (15 a 20% do território), uma das mais densas áreas da Europa.



Permitam-me agora enunciar algumas conclusões óbvias:


a) Pressão urbanística brutal, com desordenamento, desarticulação e especulação extraordinárias, e com abandono da cidade histórica;

b) Absurdos urbanos, ou seja, onde as cidades têm mais equipamentos e serviços (escolas, hospitais, centros culturais, cinemas, teatros, lojas, cafés, etc) é onde têm menos população; onde as cidades têm mais população, há carência de tudo isto, com dispêndio de enormes recursos;

c) O síndroma zoológico, ou seja, legislação específica para preservar pedaços de paisagem - os centros históricos, ainda que desertificados, e os parques naturais, ainda que desqualificada a ruralidade - sem óbvia articulação com todo o território;

d) Ineficácia dos Instrumentos de Regulação Territorial (quais os efeitos de ordenamento de tantas gerações de Planos Directores?);

e) Ausência de uma Lei de Solos eficaz, designadamente por falta de regulação das mais-valias da transformação do solo rural em urbano.



- Propostas a Curto e Médio Prazo para o Centro Histórico de Leiria
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Leiria é um caso paradigmático e paradoxal desta situação:


a) Paradigmático porque é uma das cidades portuguesas em que mais se fez e faz sentir o processo de desarticulação urbana e fragmentação territorial.

b) Paradoxal, porque ao invés do que dizem os livros (quanto mais desorganizado, menos performance socioeconómica), a cidade tem uma atractividade e dinâmica social e económica invejável quando comparada com análogas no nosso País.


Importa, pois, afirmar, que, neste quadro tão difícil quanto é difícil a situação de abandono a que chegou o seu centro histórico, não há soluções milagrosas a curto prazo. Na ausência de modelos ideais para o efeito, qualquer processo de reabilitação exigente será demorado, implicará recursos importantes (é caro) e exigirá muita ponderação política e técnica, com aprendizagem de casos análogos de sucesso (com escala aproximada).


No entanto, sob pena de nada ou pouco se fazer diante da situação, há prioridades, medidas e acções que devem ser equacionadas e que podem trazer consigo alguma mudança gradual:


a) Fixar população. Não há reabilitação urbana sem pessoas. Importa saber como e de onde captá-las. E importa saber qual o tipo de pessoas (a população residente já não tem capacidade regenerativa). Alguns dados são importantes: 5000 habitantes são profissões intelectuais e científicas, especialistas, quadros superiores e dirigentes. Estes são os que, à partida, mais reúnem condições socioeconómicas, desde que "estimulados" para o efeito. Habitação para Famílias Jovens (Política Municipal). Captação de estrangeiros no mercado internacional (terceira idade, profissões criativas, etc).

b) Aproximar a População. Não há reabilitação urbana sem políticas de proximidade. Isto implica dar a conhecer o valor do centro histórico (histórico - material e imaterial - e ambiental) e capacitar a população para saber reconhecer e emitir juízo sobre o centro da cidade (e sobre a cidade), designadamente os mais jovens (acções de educação curricular). Implementar uma Associação de Amigos do Centro Histórico. E afastar progressivamente o anátema do "antigo é velho, velho não presta".

c) Fixar e especializar actividades cívicas, sociais e económicas. Não há reabilitação urbana sem dinamização cívica e socioeconómica. Salvaguardar as funções cívicas e sociais existentes. Saber orientar recursos e investimento para "edifícios de carga" no centro histórico, enquanto âncoras de atractividade urbana. Salvaguardar e estimular o comércio tradicional com capacidade de resistência (produtos invulgares/ especializados). Fixar indústrias criativas, criadores e intelectuais. Fixar especialização, redes e conhecimento (bases de dados).

d) Potenciar o investimento público. Não há reabilitação urbana sem saber exactamente onde se gasta o dinheiro, para quê e porquê. Os recursos públicos (e privados) são sempre escassos. As infra-estruturas são determinantes. O investimento deve ser cirúrgico, aproveitando e criando oportunidades. Encontrar Mecenas e captar investimento privado.

e) Introduzir mecanismos e estímulos fiscais, económicos, ambientais e processuais. Não há reabilitação urbana sem políticas nacionais e municipais de incentivos. Redução (total, parcial ou espaçada) da carga fiscal. Penalização fiscal de construção nova para compensação e investimento na reabilitação urbana centro histórico. Linhas de crédito específicas. Aproveitar e criar os mecanismos de apoio à reconversão ambiental do edificado. Acompanhamento e facilidade processual (Gabinete de Atendimento Local).

f) Polinuclear unidades e percursos culturais. Não há reabilitação urbana sem estímulos culturais adicionais. Centro de interpretação do centro histórico. Pequenas unidades museológicas temáticas e polinucleadas no tecido urbano (arte religiosa/ património religioso, arquitectura, Rodrigues Lobo, Eça de Queiroz, Afonso Lopes Vieira, museu judaico, D. Dinis, etc.), potenciando, também, as colecções municipais. Sinalização de percursos e edifícios. Bienal/Trienal/Festival de artes especializado.

g) Turismo. Não há reabilitação urbana sem considerar a principal indústria mundial. Fixar e estimular hotéis-boutique, hotéis de charme, turismo de habitação, etc. Equacionar nichos de mercado e oferta cultural.

h) Política Municipal de Arquitectura. Saber programar. Saber gerir e aproximar a gestão. Respeitar matrizes, sistemas e modelos da forma urbana. Dar prioridade ao Espaço Público (onde, aliás, tem sido visível o investimento nos últimos anos), à Qualidade do Ambiente Construído (Durabilidade, Manutenção), à Qualidade de Vida dos Cidadãos, com mais exigência projectual.


Por fim, a Ordem dos Arquitectos, seja a nível nacional, regional ou local, está disponível para colaborar com a Câmara Municipal de Leiria e com a Sociedade Civil para reflectir e equacionar soluções para o Centro Histórico (e para a cidade) de Leiria.

João Belo Rodeia (autor)*
*N. Leiria, 1961. Presidente da Ordem dos Arquitectos (desde 2008). Professor Auxiliar Convidado da Escola de Artes da Universidade de Évora (desde 2007) e da Faculdade de Arquitectura e Artes da Universidade Lusíada de Lisboa (desde 1987). Presidente do IPPAR - Instituto Português do Património Arquitectónico (2003-2005). Licenciatura em Arquitectura (Universidade Técnica de Lisboa, 1984) e Diploma de Estudos Avançados em Projecto de Arquitectura (Universidade Politécnica da Catalunha, 2001).

Foto: TecLAR © 

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